14 Março 2023
Sem apresentar provas nem fatos, a Casa Branca usa a Ucrânia para esconder sua responsabilidade na sabotagem dos Nord Stream. A velha mídia ajuda a propagar factóides — e ocultar evidências contundentes de crimes internacionais.
A reportagem é de Aaron Maté, publicada por Contexto y Acción e republicada por Outras Palavras, 13-03-2023. A tradução é de Maurício Ayer.
Quase seis meses depois que os gasodutos Nord Stream explodiram e um mês depois de Seymour Hersh denunciar que o governo Biden foi o responsável, as autoridades dos EUA apresentaram sua defesa. Segundo o New York Times, fontes anônimas do governo afirmam que “informações coletadas recentemente” agora “sugerem” que quem atacou o Nord Stream foi um “grupo pró-ucraniano”.
A única “informação” confirmada sobre este suposto “grupo” é que as autoridades estadunidenses não têm nenhuma informação sobre eles.
“As autoridades estadunidenses alegam que não sabem muito sobre os autores e suas afiliações”, informa o New York Times. A suposta informação “recentemente obtida não especifica quem são os membros do grupo, nem quem comandou ou pagou a operação”. Apesar de não saber nada sobre eles, as fontes do NYT especulam, no entanto, que “os sabotadores provavelmente eram cidadãos ucranianos ou russos, ou uma combinação de ambos”. Eles também deixam aberta “a possibilidade de que a operação possa ter sido realizada não oficialmente por uma força agindo por procuração, com conexões com o governo ucraniano ou seus serviços de segurança”.
Quando nenhuma prova é apresentada, é claro que tudo é “possível”. Mas, curiosamente, as fontes do NYT têm certeza de uma questão crucial: “As autoridades estadunidenses disseram que nenhum cidadão americano ou britânico estava envolvido”. Além disso, “não há evidências de que o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, ou seus principais assessores estejam envolvidos na operação, nem que os perpetradores tenham agido sob a direção de qualquer funcionário do governo ucraniano”.
Apesar de não ter obtido nenhuma informação concreta sobre os autores do crime, o NYT declara que sua matéria de capa “equivale à primeira pista significativa que temos sobre quem foi o responsável pelo ataque aos gasodutos Nord Stream”.
Não se sabe por que o NYT considerou sua “pista” carente de provas “significativa” e não achou o mesmo da história de Hersh, que apareceu quatro semanas antes. A reportagem de Hersh não apenas é anterior ao NYT, como apresenta uma descrição detalhada de como os Estados Unidos planejaram e realizaram as explosões do Nord Stream.
É revelador que o NYT deturpe a base da reportagem de Hersh. “Ao apresentar seus argumentos”, diz o NYT, Hersh limitou-se a “citar” a “ameaça que o presidente Biden fez antes da invasão de ‘pôr fim’ ao Nord Stream 2 e declarações semelhantes de outros altos funcionários dos EUA”. Ao sugerir falsamente que sua reportagem se baseava apenas em declarações públicas, o NYT omitiu absolutamente que Hersh de fato cita uma fonte bem situada.
Pelo contrário, o NYT não tem informações sobre seus recém-descobertos culpados ou qualquer outro aspecto de sua pista “significativa”.
“As autoridades estadunidenses se recusaram a divulgar a natureza da informação, como ela foi obtida ou quaisquer detalhes sobre a solidez das provas que ela contém”, afirma o NYT. Consequentemente, as autoridades estadunidenses admitem que “não há conclusões firmes” a serem tiradas e que existem “enormes lacunas no que as agências de espionagem dos EUA e seus parceiros europeus sabem sobre o que aconteceu”. Aparentemente por essa razão, “as autoridades estadunidenses que foram informadas estão divididas sobre a importância que deve ser atribuída às novas informações”. O NYT, pelo contrário, não parece sentir o dito ônus da prova.
Em suma, as autoridades estadunidenses tinham “muito desconhecimento sobre os autores”, ou seja, tudo; “enormes lacunas” sobre como o (desconhecido) “grupo pró-ucraniano” supostamente realizou um ataque em alto mar; incerteza sobre “que importância dar” à sua “informação”; e até mesmo “nenhuma conclusão firme” a oferecer. Além disso, toda essa assim chamada “informação” estadunidense acabou sendo “recentemente compilada”, depois que um dos jornalistas mais talentosos da história publicou uma reportagem detalhada sobre como os serviços de inteligência dos EUA planejaram e executaram o ataque.
Dada a ausência de provas e o curioso oportunismo, uma conclusão razoável não é que uma “força ucraniana agindo por procuração” seja a culpada, mas que os EUA agora estão usando seu subordinado ucraniano como bode expiatório.
Como porta-estandarte do establishment midiático estadunidense, a “reportagem” do NYT se encaixa perfeitamente em seu papel. Dias após o ataque ao gasoduto Nord Stream ocorrido em setembro de 2022, o NYT observou que “grande parte da especulação sobre a responsabilidade se concentra na Rússia”, tal qual as autoridades dos EUA, sem dúvida, gostariam que fosse. O ex-diretor da CIA, John Brennan, ecoou essa afirmação, opinando que “a Rússia é, sem dúvida, a principal suspeita” do atentado ao Nord Stream. Citando “serviços de inteligência ocidentais” não identificados, a CNN afirmou que “oficiais de segurança europeus observaram navios da Marinha russa nas proximidades dos vazamentos do gasoduto Nord Stream”, lançando assim “mais suspeitas sobre a Rússia”, que “as autoridades europeias e americanas consideram o único ator na região com capacidade e motivação para danificar deliberadamente os gasodutos”.
Com a história de que a Rússia teria explodido seus próprios gasodutos já não se sustenta, o novo discurso do NYT nos pede para acreditar que algum “grupo pró-ucraniano” não identificado, que “não parecia estar trabalhando para os serviços militares ou de inteligência”, de alguma forma conseguiu obter a capacidade única de plantar vários explosivos em um gasoduto selado no fundo do Mar Báltico.
A mídia alemã já cobriu essa história. Horas depois da publicação da notícia do NYT, o canal alemão Die Zeit publicou uma notícia, com fontes oficiais alemãs, afirmando que a operação foi realizada por um grupo de seis pessoas, incluindo apenas “dois mergulhadores”. Esses supostos autores, segundo nos dizem, chegaram à cena do crime em um iate que saiu da Alemanha e que “aparentemente era propriedade de dois ucranianos”. Não se explica como um iate conseguiu transportar os equipamentos e explosivos necessários para a operação.
De alguma forma, os sabotadores tinham a capacidade de realizar um ataque em alto mar, mas não a consciência de limpar adequadamente a flutuante cena do crime. De acordo com Die Zeit, o navio foi “devolvido ao seu proprietário sem limpar”, o que permitiu aos “investigadores” descobrirem “restos de explosivos na mesa da cabine”. Se esta esquálida e superespecializada equipe de comandos navais “pró-ucranianos” realizar um outro ato de sabotagem em alto mar, eles só terão que contratar uma faxineira profissional para se safar.
Quanto à motivação, de alguma forma também nos pedem para esquecer que as autoridades do governo Biden não só expressaram a motivação, mas também a satisfação posterior. “Se a Rússia invadir a Ucrânia, de uma forma ou de outra o Nord Stream 2 não irá em frente”, prometeu a alta autoridade dos EUA, Victoria Nuland, em janeiro de 2022. O presidente Biden acrescentou no mês seguinte que “se a Rússia invadir… não haverá mais Nord Stream 2. Vamos acabar com isso. Vamos acabar com isso”. Após o ataque aos gasodutos Nord Stream, o secretário de Estado, Antony Blinken, saudou a notícia como uma “enorme oportunidade estratégica”. Poucos dias antes da publicação da reportagem de Hersh, Nuland informou ao Congresso que tanto ela quanto a Casa Branca estavam “muito satisfeitos” com o fato de o Nord Stream ser apenas “lixo no fundo do mar”.
O público global não está apenas sendo solicitado a ignorar as declarações públicas dos principais funcionários do governo Biden, mas também sua recusa geral em responder a quaisquer perguntas. Isso ficou claro no último final de semana em Washington, quando o chanceler alemão Olaf Scholz visitou Biden na Casa Branca. Ao contrário da última viagem de Scholz a Washington, não houve coletiva de imprensa conjunta. Isso era compreensível: na última vez em que apareceram juntos, Biden vazou que iria “acabar” com o Nord Stream, deixando Scholz ao seu lado em um silêncio constrangedor. Desta vez, os dois sentaram-se brevemente diante de um grupo de repórteres que foram prontamente conduzidos para fora da sala, para aparente regozijo de Biden.
Os meios de comunicação estadunidenses se inteiraram: em uma entrevista cara a cara com Scholz, Fareed Zakaria, da CNN, não achou um momento para mencionar a reportagem de Hersh. Ao cobrir a visita do chanceler alemão, veículos estadunidenses como o New York Times e o Washington Post fizeram um voto de silêncio semelhante.
Inadvertidamente, a história do NYT expõe novas brechas nas tentativas fracassadas de refutar a história de Hersh.
Membros do Bellingcat, site da OTAN financiado pelo Estado e falsamente apresentado ao público pelos estados da OTAN como um meio de investigação independente, tentaram lançar dúvidas sobre as alegações de Hersh argumentando que o rastreamento de código aberto do momento do bombardeio não detecta as embarcações que ele reportou. Mas, como assinala o artigo do NYT, os investigadores estão procurando informações sobre navios “cujos transponders localizadores não estavam ligados ou não estavam funcionando quando passaram pela área, possivelmente para ocultar seus movimentos”. Hersh defendeu o mesmo ponto em várias entrevistas, observando que quando Biden voou para a Polônia antes de sua visita a Kiev no mês passado, seu “avião desligou seu transponder” para evitar a detecção, como relatou a Associated Press. Para a desgraça dos autodenominados sherlocks digitais, os grandes crimes internacionais – particularmente aqueles que envolvem agências de inteligência – não podem ser resolvidos com seus laptops em casa.
Hersh também foi ridicularizado por citar uma única fonte anônima. A história do NYT, em vez disso, conta com várias fontes anônimas que, ao contrário de Hersh, não têm nenhuma informação tangível a oferecer. Depois de ignorar a história de Hersh por um mês inteiro, a seção de notícias do NYT foi forçada a reconhecê-la pela primeira vez. E o melhor que suas fontes anônimas puderam apresentar não é apenas um relato sem provas e cheio de ressalvas, mas uma história que não questiona um único aspecto do relato detalhado de Hersh.
Por outro lado, Hersh é um dos jornalistas mais renomados e de maior repercussão na história da profissão. Dois dos jornalistas do artigo no NYT, Julian E. Barnes e Adam Goldman, assinaram vários artigos espalhando falsidades demonstráveis tendo como fontes autoridades estadunidenses anônimas.
No verão de 2020, Barnes e Goldman estavam entre os jornalistas do NYT que apagaram a desinformação da CIA de que a Rússia estava pagando enormes recompensas por soldados estadunidenses mortos no Afeganistão. Quando o próprio governo Biden foi forçado a admitir que a acusação era infundada, o NYT tentou suavizar suas afirmações iniciais em uma tentativa de salvar a própria cara.
Em janeiro, Barnes co-escreveu um artigo no NYT em que afirmava, citando “autoridades estadunidenses” anônimas mais de uma dúzia de vezes, que “agentes de inteligência militar russos” estavam por trás de “uma recente campanha de cartas-bomba na Espanha cujos alvos mais proeminentes eram o presidente do governo, o ministro da Defesa e estrangeiros diplomatas”. Mas dias depois, conforme relatado pelo Washington Post, as autoridades espanholas prenderam “um espanhol de 74 anos que se opunha ao apoio de seu país à Ucrânia, e que aparentemente agiu sozinho”. (Moon of Alabama é uma das poucas vozes que denunciaram as informações fraudulentas do NYT).
No mesmo mês, Goldman foi co-autor, com seu colega Charlie Savage, um taquígrafo da “recompensa russa”, de um artigo no NYT que sustentou que o conselheiro especial John Durham “não encontrou nenhuma irregularidade nas origens da investigação sobre a Rússia”, apesar do fato de que as descobertas de Durham nunca terem sido tornadas públicas. Conforme informei à Real Clear Investigations, o NYT apresentou seu caso omitindo informações verificadas e distorcendo fatos, como é a norma na cobertura da mídia mainstream sobre o Russiagate.
Presumivelmente, as autoridades estadunidenses que estão por trás da última matéria do NYT sobre o Nord Stream acreditam ter oferecido a melhor resposta possível a Hersh. O fato de carecer de informações concretas e ser escrito por funcionários da Times com um histórico de papaguear a propaganda da inteligência dos EUA acaba, em última instância, tendo o efeito oposto.
O discurso do New York Times só pode ser entendido como mais uma confirmação de que Hersh encontrou o terrorista do Nord Stream em Washington. Isso explica por que as autoridades estadunidenses anônimas estão agora usando seus procuradores na mídia mainstream de seu país para apresentar como bode expiatório os seus procuradores ucranianos.
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Gasoduto explodido: por que os EUA mentem - Instituto Humanitas Unisinos - IHU